Pesquisadores revelam que a dependência de jogos eletrônicos possui chances de ser relacionada ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), com previsão de lançamento da sua quinta edição em 2013
Os jogos eletrônicos, amplamente utilizados pelos seus usuários no século XXI, possuem um histórico relativamente recente. Considera-se o ponto de partida a década de 1950, com um brilhante trabalho de Alan Turing sobre modelos de inteligência artificial (IA) que revolucionariam a relação dos seres humanos com a tecnologia. Há cerca de 60 anos o seu trabalho consistia em testar a existência de "inteligência" nos computadores, o que pode ser entendido como
um modelo primitivo de IA. Suas pesquisas representam a revolução de uma geração inteira, possibilitando avanços significativos no mundo tecnológico. Nos anos seguintes houve uma evolução constante nessa indústria, com a inserção dos videogames e, logo depois, os jogos de computador. As melhorias seguiam em velocidade notável, seja através do aperfeiçoamento dos gráficos, pluralidade dos gêneros de jogos eletrônicos (aventura, ação, esportes e estratégia, por exemplo), assim como o uso da internet para jogar on-line (comumente com vários jogadores, no modelo multiplayer).
Considera-se a indústria dos jogos eletrônicos como uma das várias disseminações da tecnologia que não possuem fronteiras, tratando-se de um território em ampla expansão. Contemporaneamente, tendo atingido, de forma direta ou indireta, uma significativa parcela da população mundial, os jogos eletrônicos são considerados um dos modelos lúdicos mais presentes no cotidiano de crianças, adolescentes e adultos jovens, independentemente do poder aquisitivo do jogador. Os jogos eletrônicos estão presentes nos mais diversos ambientes, seja nos lares, em lan houses e, atualmente, através de conexões wi-fi, e o jogador pode utilizar esse artefato em qualquer local que disponibilize rede de internet.
Os jogos eletrônicos são considerados um dos modelos lúdicos mais presentes no cotidiano de crianças, adolescentes e adultos jovens de todo o mundo, em lares, lan houses e através de conexões wi-fi As novas tecnologias configuram-se, então, como uma realidade que não encontra barreiras para seu desenvolvimento, principalmente no sentido de conquistar o público jovem. Atualmente, há aparelhos que simulam odores, uso do corpo humano como um todo para poder jogar, além de imagens que dão a impressão de sair da tela do aparelho. Toda essa evolução tecnológica visa proporcionar novas experiências perceptivas e sensitivas aos jogadores, o que, frequentemente, tem sido motivo de preocupação de pais e educadores sobre sua influência na formação de crianças e adolescentes. Em paralelo, a diversão propiciada pelo mundo virtual é hipnótica. Esse elemento lúdico, frequentemente mencionado pelos usuários, é objeto de estudo de diversos pesquisadores. O brincar, condição que os jogos eletrônicos possibilitam, é constituinte da personalidade do jogador influenciando nos seus reflexos, tomada de decisões e interatividade.
Considera-se a indústria dos jogos eletrônicos como uma das várias
disseminações da tecnologia que não possuem fronteiras
Outros tópicos pesquisados pela comunidade científica em relação à indústria dos jogos eletrônicos são: a violência presente no mundo virtual e suas possíveis afetações cognitivas e comportamentais (já estudada com base na Teoria Social Cognitivade Albert Bandura e a Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici, por exemplo); o usufruto como possibilidade de aprendizagem (colégios que já inseriram os jogos eletrônicos no sistema educacional); catarse (mecanismo pelo qual o usuário utiliza os jogos como forma de dissipar a raiva, angústias e outras emoções negativas, propiciando um breve estado de relaxamento) e auxílio terapêutico (recurso utilizado na recuperação de pacientes acometidos por diversos tipos de psicopatologias).
Huesmann (2007) aponta que nesse ambiente, circunscrito por televisores, filmes, jogos eletrônicos, aparelhos celulares e computadores, tais artefatos acabaram por assumir um papel nuclear no cotidiano da sociedade. Segundo o pesquisador, independentemente de considerarmos essas mudanças positivas ou não, é notável que elas causam um impacto na construção de pensamentos e comportamentos dos indivíduos. Dessa forma, podemos refletir: de que maneira, então, esses utensílios cibernéticos interferem em nossas vidas?
Sintomas do dependente de jogos eletrônicos
A dependência pode ocorrer quando o usuário encontra-se incapaz de controlar a frequência e o tempo de uso de uma atividade que anteriormente era considerada inofensiva, demonstrando sinais de excesso nessa prática. Apesar de ainda não haver uma sistematização definida da sintomatologia referente a uma possível dependência de jogos eletrônicos, os sintomas mais aceitos atualmente são os propostos por Lemmens, Valkenburg e Peter (2009): saliência (utilização de jogos eletrônicos como atividade mais importante na vida do usuário, dominando seus pensamentos, sentimentos e comportamento); tolerância (tendência a aumentar o tempo de uso para obter satisfação); modificação do humor (irritabilidade, tristeza); retrocesso (emoções negativas ou efeitos físicos que ocorrem quando o jogador reduz ou descontinua o uso); recaída (tendência a tentar repetidamente reverter o padrão de tempo de uso, rapidamente restaurado após período de abstinência ou controle); conflito (problemas interpessoais, que podem envolver mentiras ou decepções); problemas na área social (piora no rendimento no trabalho, ambiente de estudo e socialização).
Viés nocivo
Apesar dos diversos benefícios na prática dos jogos eletrônicos, apenas recentemente esse universo passou a ser estudado por outro viés: o do adoecimento psíquico. Pesquisadores revelam que a dependência de jogos eletrônicos possui chances de ser relacionada ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), com previsão de lançamento da sua quinta edição em 2013. De forma semelhante, a dependência de internet e sexo virtual (cibersexo) são dois outros vieses estudados sobre o uso inadequado de tecnologia que também podem pertencer ao novo DSM. A possibilidade de grupo a serem incluídos é o do transtorno do controle dos impulsos, o mesmo da tricotilomania e do jogo patológico. Entretanto, há teóricos que sugerem que as dependências tecnológicas podem estar ligadas ao grupo do uso de substâncias. Essa hipótese ocorreu devido ao resultado de pesquisas que revelaram que utilizar os jogos eletrônicos de forma excessiva provoca um aumento na atividade cerebral, em especial no córtex pré-frontal (área do cérebro responsável pelos pensamentos complexos e tomada de decisões), semelhante à fase de fissura dos dependentes químicos. Apesar de a segunda hipótese estar baseada em estudos de neuroimagem por ressonância magnética (estrutural e funcional), são remotas as chances de a dependência de jogos eletrônicos estar relacionada a esse grupo.
Em relação às causas que levam um indivíduo a desenvolver a dependência de jogos eletrônicos, não há estudos substanciais que respondam a essa questão. Toma-se como hipótese etiológica a vulnerabilidade mental, fatores biológicos (hereditariedade) e aprendizagens incorretas ao longo da vida, devendo esta psicopatologia ser estudada através de uma perspectiva multifatorial. Estudos demonstram que esse transtorno ocorre com maior frequência em indivíduos do sexo masculino, comumente em adolescentes e adultos. Há hipóteses que defendem que, quanto mais cedo o usuário tiver acesso aos jogos eletrônicos, maiores serão as chances de desenvolver essa psicopatologia no futuro.
Dados epidemiológicos sugerem que 3% dos usuários de jogos eletrônicos, em escala mundial, podem ser dependentes. O número de jogadores com uso problemático é ainda maior (uma forma mais branda de uso inadequado, mas que não possui sintomas suficientes para configurar uma dependência): 9%. No Brasil, ainda há uma substancial carência de dados referentes à ocorrência dessa dependência na população que utiliza jogos eletrônicos.
O brincar, condição que os jogos eletrônicos possibilitam, é constituinte da
personalidade do jogador influenciando nos seus reflexos
Observa-se, frequentemente, a ocorrência de diversas psicopatologias concomitantemente à dependência de jogos eletrônicos. A literatura cientí fica menciona o uso de substâncias, os transtornos de ansiedade (em especial o transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de ansiedade generalizada e o transtorno de ansiedade social), transtorno de dé ficit de atenção e hiperatividade e transtornos do humor, com ênfase na depressão (sendo a psicopatologia mais relacionada a qualquer tipo de dependência tecnológica). Pesquisadores sugerem que esse quadro concomitante com a depressão ocorra devido à tentativa do usuário de aliviar os sintomas depressivos através da prática de jogos eletrônicos, como uma forma de escapismo. Entretanto, em diversos casos, o que ocorre é uma intensi ficação da dependência, o que vem chamando atenção dos pro fissionais de saúde no manejo de pacientes deprimidos que utilizam jogos eletrônicos de forma inadequada. Estudiosos ainda sugerem que possam existir outras comorbidades relacionadas à dependência de jogos eletrônicos, ainda que com frequência menor, como os transtornos de personalidade.
Estratégias de prevenção destinadas às crianças podem evitar o aparecimento de sintomas da dependência de jogos eletrônicos e já são utilizadas, sobretudo, nos países asiáticos, com resultados notáveis.
Possíveis tratamentos e prevenção
Há teóricos que sugerem que as dependências tecnológicas
podem estar ligadas ao grupo do uso de substâncias
Esse modelo, citado anteriormente, é baseado na terapia cognitivo-comportamental, uma possibilidade psicoterapêutica para a dependência de jogos eletrônicos. Através de técnicas, comumente utilizadas nesta abordagem, é possível permitir ao paciente uma reestruturação cognitiva que o conduza a pensamentos adaptativos e, paralelamente, possa expandir o seu repertório de comportamentos saudáveis, resultando ao usuário uma melhoria significativa dos sintomas. O aspecto emocional do paciente é outro ponto a ser trabalhado pelo psicoterapeuta. Além disso, são realizadas técnicas que estejam vinculadas à motivação do paciente, enfatizando as potencialidades do jogador dependente, propiciando melhora na autoestima do usuário.
Estratégias de prevenção destinadas às crianças são citadas pela literatura científica como forma de evitar o aparecimento de sintomas da dependência de jogos eletrônicos. Apesar desse modelo interventivo ainda estar circunscrito principalmente nos países asiáticos, já se discute a expansão do acesso à informação sobre as dependências tecnológicas à sociedade, principalmente no Brasil, país que ainda está em seus primeiros passos no estudo das dependências tecnológicas (ainda que haja uma quantidade superior de estudos em relação à dependência de internet em solo nacional). Estratégias de prevenção vêm apresentando resultados notáveis, evitando a queda no rendimento escolar desses usuários, que é uma das áreas mais afetadas por quem apresenta uso problemático ou mesmo a dependência de jogos eletrônicos.
Ajuda dos familiares
Infelizmente, é frequente ouvir comentários equivocados de pais que justificam que é preferível permitir que o seu filho utilize jogos eletrônicos por diversas horas seguidas, como forma de evitar que eles saiam de casa, pelo fato "de o mundo ser perigoso". Ao invés da proteção sugerida pelos familiares, o que pode estar ocorrendo é o oposto, ou seja, a possibilidade de desenvolvimento de um transtorno psiquiátrico contemporâneo. Além de conversas com seus filhos sobre a sexualidade, uso de álcool e outras drogas, os pais também precisam relacionar em sua pauta a internet e os jogos eletrônicos que são, muitas vezes, os periféricos mais presentes na vida do adolescente.
O tratamento da dependência de jogos eletrônicos está em processo de
aperfeiçoamento contínuo, mas é pouco conhecido pela população
A maior dificuldade no tratamento da dependência de jogos eletrônicos, além da carência de informações, é o processo de redução no tempo de uso dessa tecnologia. Nenhum modelo terapêutico, até então, propõe que o usuário deixe de utilizar por completo os jogos eletrônicos. E é nesse ponto que surge talvez a maior dificuldade para os profissionais da saúde, pois o usuário, depois do processo de tratamento, volta ao objeto relacionado diretamente ao seu transtorno (jogos eletrônicos e/ou internet). Apesar de este ser um dos fatores mais críticos no tratamento, pois ainda provoca constantes recaídas (a literatura científica menciona uma porcentagem de cerca de 20%), é o desfecho que tanto o paciente e o profissional de saúde buscam: o uso adaptativo de jogos eletrônicos.
O objetivo principal do presente artigo foi revelar uma possibilidade real de adoecimento na sociedade contemporânea. Mesmo que ainda não seja considerado um transtorno psiquiátrico, existem estudos substanciais, e cada vez mais pesquisadores estão detendo seus esforços no conhecimento desse fenômeno. É importante que os profissionais de saúde, usuários de jogos eletrônicos e a sociedade em geral que utilizam essa tecnologia possam estar cada vez mais informados sobre as psicopatologias do mundo virtual.
É necessário refletir que o ser humano pode utilizar os recursos atuais (jogos eletrônicos e internet), como importantes instrumentos no cotidiano, seja no campo lúdico, na comunicação em tempo real ou na pesquisa de trabalhos científicos. Porém, podemos estar, sem saber, diante de transtornos psiquiátricos que possuem um prognóstico negativo, ou seja, que ocorra um aumento de casos de dependentes de tecnologia nos próximos anos. Importante ressaltar, por fim, a necessidade urgente de que pesquisas sobre a dependência de jogos eletrônicos sejam desenvolvidas no Brasil.
Referências
HUESMANN, L. R. The impact of electronic media violence: scientific theory and research. Journal of Adolescent Health, v. 2007.
JAGER, S.; MULLER, K.W.; RUCKES, C. et al. Effects of a manualized short-term treatment of internet and computer game addiction (STICA): study protocol for a randomized - controlled trial. Trials, v. 27, n. 13, 2012.
LEMMENS, J.S.; VALKENBURG, P.M.; PETER, J. Development and validation of a game addiction scale for adolescents. Media Psychology, n. 12, 2009
LEMOS, I.L.; SANTANA, S.M. Dependência de jogos eletrônicos: a possibilidade de um novo diagnóstico psiquiátrico. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 39, n. 1, 2012.
http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/82/artigo271843-3.asp
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